sábado, 6 de fevereiro de 2010

Salvamento - um final feliz


Não senti medo
Não senti as mãos a tremerem
Nem senti que andássemos em câmara lenta
E isso fez-me sentir que estava a ser guiada
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Consegui acudir uma pessoa dentro de um carro capotado.
.
A visão é aterradora, mas fui invadida por uma calma que me permitiu ajudar com consciência dos meus actos.
As portas estavam trancadas e eu fui a 2ª pessoa a chegar, enquanto a 1ª pessoa (homem) corria a pé em direcção ao carro, eu encostei o meu carro e corri também.
O senhor de idade estava consciente e não estava ferido, mexias as pernas e os braços, debatia-se para tentar sair, assustado.
Sentiu-se assustado, sem compreender como tinha acontecido o acidente (sózinho).
O carro estava trancado, mas felizmente era um carro antigo e a porta da bagageira estava aberta, foi por aí que consegui baixar os bancos dando espaço para que o outro senhor conseguisse baixar o banco do velhote, de forma a se conseguir puxá-lo para fora do carro.
Entretanto chegou um carro da polícia prisional e ao vê-lo pedi que ajudasse a puxar o senhor (pois pesava muito e o guarda prisional tinha "bom cabedal").
Conseguiu.
Coloquei a alcatifa do porta bagagens no chão para sentarmos o senhor.
Nessa altura chegou uma enfermeira que falava com o senhor e disse que não havia necessidade de o deitar).
Alguém chamava o 112.
Tirei o triângulo e coloquei-o na via de forma a trancar a estrada - que é estreita.
O senhor disse que tinha uma filha mas que não era preciso chamá-la, para ela não se preocupar.
Estava muito preocupado com o estado do carro.
Alguém disse - eu não tenho saldo quem é que pode ligar para a filha do senhor?
Eu! disse imediatamente eu.
Nessa altura vi aquilo que nunca tinha vivênciado... um molho de uma dúzia de pessoas a dissipar-se.
O cartão era antigo e o número do local de emprego da filha já não existia ou estava desactualizado, porque ninguém atendia de nenhum dos 2 números do cartão.
Chegava a ambulância do INEM e o carro dos Bombeiros.
Liguei para um outro Hospital do mesmo grupo e consegui o novo número.
Liguei e esperei até que me atenderam. Expliquei a situação de acidente de capotamento com um senhor de idade, depois da telefonista me confirmar que a filha trabalhava lá, mas que há 6ª feira não. Que bom, pensei eu! Voltei a explicar à telefonista que era necessário que um familiar se responsabilizasse pelo senhor. Deixou-me á espera mais de 6 minutos e acabou por me dizer que não podia dar o contacto da filha, mas que eu lhe deixasse o meu contacto que ela iria tentar contactar a filha do sinistrado.
O paramédico perguntava-me se já tinha conseguido falar com a filha.
Ouço alguém comentar que o senhor já tinha 92 anos e que não compreendiam como ainda conduzia.
92 anos?! nunca pensei que tivesse tanta idade.
O senhor J estava consciente, falava bem, tinha a pressão só um pouco elevada e continuava a não querer que falássemos com a filha.
A GNR já estava no local.
Liguei ao meu pai para me dar o número da assistência em viagem da companhia de seguros do senhor J, que apenas tinha os dados do exterior da viatura.
Voltou a ligar-me e eu anotei o número.
Liguei para a assistência em viagem. Perguntas sem sentido após explicar a situação complicada de capotamento. Ficaram com os meus dados que me voltavam a contactar.
Junto à ambulância o GNR confirmava que a carta de condução do senhor J caducava em Abril.
5 minutos depois recebia o telefonema deles onde insistiam que tinham que saber o nome do senhor, corri para a ambulância e confirmei o nome, perguntava alguém do outro lado da linha para que oficina queria que o carro fosse, aqui eu recusei-me e voltei a explicar a situação do acidente, ao que a moça me respondeu que o senhor tinha o seguro da ACP e que iriam enviar o reboque, depois logo diriamos para onde deveriam levar o carro.
Ao olhar para dentro da viatura vejo uns cadernos e tendo em conta que o senhor J não tinha telemóvel, pedi ajuda ao bombeiro para ir dentro do carro ver os cadernos.
Ele tirou-me os cadernos e deu-mos.
Ao folheá-los rápidamente mas atentamente pude-me aperceber que o senhor J tinha uma visão óptima pois escrevi direito cartas, memorandos, notas e até jogos com números, em tamanhos bem pequeninos alguns deles, com vários bolhetins de totoloto.
No 2º caderno, a meio estava uma carta onde no fim dizia "a minha querida filha 21------".
Liguei directo.
Atendeu a empregada, expliquei que tinha havido um acidente com o senhor J, que estava bem mas que precisava de falar com a filha.
Ouço alguém a correr e um "tou!", calmamente disse "dona T peço desculpa, mas houve um acidente de carro com o seu pai, ele está bem não tem qualquer ferimento, mas precisamos de um familiar ...", "sim onde é que está o meu pai?! mas ele está mesmo bem? por favor não deixe que levem o meu pai para o hospital CCG que eu vou já para aí! por favor eu não conheço isso diga-me por favor como eu vou para aí" "pela auto estrada".
Comuniquei à GNR, aos Bombeiros e ao Inem que já tinha encontrado a filha e que ela vinha já.
Trânsito cortado, transeuntes curiosos e a opinar sentenças idiotas.
Os bombeiros e os GNRs conseguiam virar o carro e empurrá-lo.
Caiu direito, empurraram-no para a berma (junto ao meu carro).
O INEM estava inquieto porque não podiam esperar mais.
A filha ligava para mim constatemente.
Perdeu-se, um amigo meu que morava lá perto tentou explicar à filha como ela podia encontrar o caminho.
Pior a emenda do que o soneto...
Entretanto vejo os bombeiros a entrarem dentro do carro e a dizerem-me que a ambulância vai para o Hospital e que não podem esperar mais.
A filha ao ouvir gritava do outro lado, para que eu não deixasse, que aquele hospita era terrível, que ela levava-o onde ela trabalhava e que lhe fazia os exames todos.
Corri e não vi a ambulância.
A filha não sabia explicar onde estava.
Sentia-a nervosa, sabia que estava a conduzir.
Tentava acalmá-la, ela perguntava imensas vezes se o pai estava mesmo bem, sim está!
Vi a ambulância que afinal tinha se encostado na berma e aguardava por mim.
Pedi-lhes para esperarem só mais um pouco, pedi ajuda ao GNR para orientar a filha até ali, então ele falou com ela e foi ter com ela.
O paramédico conversava comigo que se o senhor J não estivesse assim bem ele nunca poderia esperar.
Nessa altura chegava o reboque, tive que ir tirar o meu carro para que ele pudesse levar o carro.
A chave estava com o GNR que tinha ido buscar a filha, a oficina a filha já lhe dizia qual.
Chegam eles, vou para junto da ambulância.
O carro da filha pára atrás da ambulância e corre para abraçar o pai que estava fora da ambulância de pé.
Ela olha para mim e diz "é a Diana?", sou digo eu e recebo em troca um abraço apertado e um muito obrigada dito com a alma.
Percebi apenas naquela hora que a filha já era uma pessoa de idade e lembrou-me de ter pensado que deveria ter ido ter com ela em vez de lhe ter dado instruções por telefone. Era mais do que normal ela estar nervosa demais para processar informações de caminhos.
Mas estava tudo bem.
O reboque encostava mais à frente já com o carro.
Ajudei a abrir a porta para colocar o senhor J dentro do carro da filha T.
Sou médica, dizia ela aos paramédicos e autoridades, e vou levá-lo já para o HC para fazer uma TAC e uns exames.
Despedi-me e vi naqueles olhos de filha uma gratidão verdadeira.
Desejei um resto de bom trabalho aos GNRs e aos paramédicos e fui para o meu carro.
Hoje enviei um sms à filha-doutora-T a perguntar se tinha tudo corrido bem com o pai J.
Ligou-me a agradecer mais uma vez, disse que tinham feito todos os exames e que o pai J estava muito bem, voltou a agradecer dizendo que já não há muita gente como eu, disposta a ajudar. Disse que ela era médica, o marido também e o filho era advogado, se eu algum dia precisar de alguma coisa, que lhe ligasse que ela teria todo o gosto em ajudar. Agradeci e disse que o importante era o pai J estar bem. Um bom ano e muita saúde e obrigada! foram as últimas palavras que lh ouvi.
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Retiro de todo este episódio da minha vida os seguintes ensinamentos:
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- em acidentes existem muitos mais curiosos neutros e curiosos maus, do que pessoas dispostas abdicar do seu tempo e alguns euros (gastei 1h30 do meu tempo e mais de 5€ de saldo do telemóvel para verdadeiramente - ajudar!
- em acidentes esse tipo de curiosos fazem histórias inventadas, dão nomes falsos às vítimas, inventam-lhes moradas, matam-lhes familiares, querem ver não sei bem o quê, sem interesse nas vítimas. Hoje ligaram-me a dizer que já se dizia pelos cafés que o senhor J tinha morrido (dái o motivo incluso do meu sms hoje para a filha T)
- Num acidente não é preciso público mas sim gente que ajude! Quem estiver a mais é favor seguir a sua vida! Quando precisaram de ajuda para virar o carro, tudo ficou parado de braços cruzados a ver, sem dar uma ajudinha!
- Tanta gente a olhar e a ocupar espaço sem necessidade!! não lhes consigo dar justificação para tal acto! juro!
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- Ao ver e presenciar o que vi e senti ontem, pude confirmar aquilo que a filha T me disse hoje, mas só espero, tal como lhe disse a ela, que se eu ou algum dos meus um dia precisar de ajuda, que esteja no local alguém guiado como eu fui ontem, capaz de verdadeiramente ajudar.


5 comentários:

akombi disse...

é uma situação complicada mas garanto te que não faria o que fizes te talvez como eu mtas pessoas pensem que uma coisa é parar e telefonar para o 112 e espera até ue eles chegassem de forma a não abandonar a pessoa, agora é participar da forma como participas te acho que não era capaz isto porque? porque ao parar e puxar a pessoa para fora do carro poderia estar de alguma forma a fazer lhe pior que o que aconteceu no acidente ( soube de um caso de um acidente de mota em que o rapaz estava bem a fala e as pessoas junto dele e houve um que lhe tirou o capacete, resultado.......assim friamente....os miolos viram atrás e o rapaz caiu para o chão para nunca mais se levantar).
Depois o falar para os familiares, isso é da competência das autoridades, ´são eles que têm pessoas formadas para esse acto.

è de louvar os teus actos, mas como digo eu não era capaz.

boa semana

carla brandao disse...

passo de vez enquando por aqui mas nunca comentei, mas hoje tenho de lhe dizer que li este texto até com alguma emoção e identifico-me muito com as suas palavras finais, mas repare que não é só em situações de acidente que as pessoas se comportam desta forma, é assim em tudo na vida.. infelizmente. Eu também gosto muito de ajudar, tiro um grande prazer disso, por vezes ando a pedinchar coisas ou generos (o que calhar..) para dar os necessitados ou aos doentes e faço tudo sozinha, raramente ou nunca encontro quem me ajude, todos vivem no seu mundinho egoista e não querem dele sair. Obrigada.

Dianamãe disse...

Olá Kombi! Obrigada pela tua visita e comentário!

Deixa-me só fazer dois apartes:
1.
é que o senhor já estava a tentar sair pelos seu próprios meios, mas como estava a ver tudo ao contrário (capotamento) estava a ficar um pouco stressado, capaz de ter um ataque de pânico.
O retirar da viatura não foi algo imediato nem rápido.
Não mexer nas vítimas é sempre a primeira coisa a fazer!!!

O senhor que vinha a pé, socorreu primeiro do que eu, notei que estava mais aflito em tirá-lo de lá, talvez porque já se tenha visto numa situação daquelas, não sei.
O carro não estava amolgado, a velocidade dele não deveria ser tanta, julgamos que ao embater ligeiramente com o lado direito do carro numa escada, encadeado com o Sol, tenha acelerado em vez de travado.

Obrigada pelas tuas palavras e volto a reforçar a ideia de que a vítima não pode ser retirada da viatura ou do chão, em caso de acidente.
(neste específico caso o senhor J já estava a tirar o cinto, a levantar as pernas e a virar-se, com 92 anos não deve ser algo que gostemos de vivênciar - um capotamento do nosso carro)


2.
Em relação às competências - as autoridades estiveram sempre comigo e pediram-me ajuda para tentar encontrar a filha. Se eram eles que deveriam estar a gastar o saldo dos seus telemóveis públicos? talvez mas não me sinto mais pobre por ter gasto aquele dinheiro, nem nenhuma das autoridades presentes no local alguma vez se prontificou a usar os seus telefones.


Jinhos às 2 comentadoras :)

Cenas de Gaja disse...

Ler o teu texto hoje foi de arrepiar… Parabéns que serenidade e não mudes esse instinto (sim, só pode ser instinto) de ajudar! Xi-coração.

** Gaja //

Anónimo disse...

Realmente, só uma pessoa com um coração grande como o teu, para vivenciar uma cena destas... minha lady Di, tou mt orgulhosa de ti, ÈS GRANDI :)

jocas